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A difícil tarefa de sair das drogas

Se livrar do vício exige esforço integrado, redução de danos e fé

Atualizado em

A compulsão, junto com a depressão, parecem ser os vilões que assombraram o final do século XX e, ao que tudo indica, permanecerão a assombrar o século XXI. Pesquisadores falam da solidão e do vazio da vida contemporânea, da falta de referenciais que um dia já foram oferecidos por instituições aparentemente mais sólidas, como a Igreja e a família, e do abismo ao qual somos lançados em um mundo repleto de informações e possibilidades fora do eu, que ao mesmo tempo nos assustam, mas também nos instigam a viver com mais riscos.

Esse cenário é fecundo para desequilíbrios psicológicos e sociais, uma vez que cada ser humano se sente perdido, mas impelido a fazer alguma busca apressada por respostas. Assim como afirmado no início do texto, uma manifestação muito comum desses desequilíbrios são as compulsões e depressões, e dentre as compulsões, há o clássico caminho do vício ou dependência química.

Qualquer vício é desenvolvido por padrões repetitivos de comportamento, como uma programação que vai se instalando paulatina e sistematicamente em um sistema. Todos precisam comer, mas ensinamos ao corpo que precisamos comer ao todos os dias às 12h, por exemplo. Claro que no terceiro ou quarto dia, teremos fome nesse horário. As crianças aprendem tomando contato com conteúdos novos e os acomodando internamente através de repetições e da criação de padrões internos. É natural que o adulto também aprenda dessa forma. Isso significa que ensinamos à mente e ao corpo que ele precisa daquela substância.

Mudanças exigem disciplina

“Desensinar” é o problema. Programar e “desprogramar” são a mesma coisa? Infelizmente não. Toda programação gera memórias sensoriais e afetivas. A sociedade ainda não parece ter inventado uma “desprogramação” que deleta completamente as memórias. Para quem quer sair das drogas, portanto, será preciso encarar a nova vida com a coragem de quem sabe que terá de conviver com marcas desse passado para sempre. Isso não quer dizer que não há saída; apenas que a saída é muito difícil.

Qualquer mudança de vida exige disciplina, retidão nas intenções e aceitação da parte sombria de nossa alma. Sem esses elementos, é pouco provável que se chegue e algum lugar muito diferente do que se está. Os dependentes químicos, especialmente os usuários de cocaína e drogas do estilo mais “pesado”, geralmente carregam uma personalidade “dona de si”, que não aceita adaptar-se às regras do mundo, optando por trilhar um caminho muito particular, alheio aos conselhos e ao que já foi feito antes. Essas pessoas podem sofrer de uma certa arrogância, rebeldia ou displicência perante os ensinamentos da vida e por isso geralmente acabam “pagando” da pior maneira.

A compulsão é um caminho desesperador para quem está dentro e fora da crise, pois mesmo em situação de sofrimento, o usuário permanece dependente e buscando a droga. Nada parece deter esse mecanismo poderoso. O primeiro passo para a cura é o reconhecimento dessa absoluta falta de controle, seguidos de uma resolução determinada e firme de mudança. Essa resolução vem para cada pessoa em um tempo e motivada pelas mais diversas dores.

Essa resolução precisa ser acompanhada de perto por familiares e por auxílio de diversas frentes (médico, psicológico, religioso). Para combater uma programação violenta como a do vício, é preciso uma disciplina extremamente rígida, como uma vigilância de pensamentos e ações. Infelizmente, o começo do processo de cura é um tanto artificial, pois consiste em autovigilância constante. Ao longo dos tempos, essa vigilância tende a se tornar mais natural, pois terá sido fruto de aprendizado real.

Reduzindo danos

A linha de psicoterapia mais comumente utilizada no tratamento da dependência química é a cognitivo-comportamental, que trabalha, grosso modo, com a reprogramação da mente para comportamentos que trarão maior benefício ao usuário. Um termo muito comentado na literatura da área de dependência química é o trabalho de redução de danos, que consiste em estratégias, inclusive em nível de intervenção governamental, visando oferecer informações adequadas sobre práticas que envolvem menos riscos, garantindo preservação da dignidade e da saúde.

No mundo, há diversas iniciativas de redução de danos. A Holanda possui coffe shops nos quais se pode fumar maconha, por exemplo. Em Viena, existem políticas públicas de distribuição de seringas para usuários de heroína, evitando contaminação de AIDS e outras doenças. Na Inglaterra, foi criado por Barbara Harris o Project Prevention, que oferece dinheiro aos usuários que se submetem à vasectomia ou esterilização, visando evitar os maus tratos de dependentes para com seus filhos, bem como as más formações e os efeitos que o abuso de substâncias ao longo da gravidez podem provocar.

As tentativas são várias e multidirecionais, indicando que o mundo está realmente assustado e sensibilizado pela devastação que as drogas têm provocado. E nesse texto nem tocamos na outra ponta do problema: o tráfico de drogas, evidenciado pelo nosso herói Nascimento e sua Tropa de Elite, bem como pela situação do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro e do programa das Unidades de Polícias Pacificadoras, que são o início de um longo caminho de construção de um novo paradigma de convivência social.

A verdade é que o caminho da saída do mundo das drogas, tanto em nível individual, quanto em nível coletivo, é lento, difícil e extremamente delicado. Em âmbito individual, os maiores riscos são o surto psiquiátrico, a desintegração total da família, a degeneração do caráter, envolvendo crimes, e em última instância, a morte do usuário e de outras pessoas. No âmbito coletivo, os riscos também são de morte de pessoas que não são envolvidas diretamente na situação, além de caos e instabilidade social, falta de credibilidade no governo, falta de perspectiva de melhoria, depressão coletiva.

Enfim, não há aprendizado sem esforço de todos os envolvidos; muito esforço, diga-se de passagem. Há um ditado antigo que diz: “se queres paz, prepare-se para a guerra”. Eis o lema que os dependentes, familiares, governo e qualquer instância que queira colocar sua mão no sentido de trazer luz à situação de sombra deve manter constantemente consigo diante da busca por melhoria, tratamento ou cura. Lembrando sempre de que amanhã devemos acreditar de novo e começar tudo outra vez.

Clarissa De Franco

Clarissa De Franco

Clarissa De Franco é psicóloga, com Doutorado em Ciência das religiões e Pós-Doutorado em Estudos de Gênero. Atua com Direitos Humanos, Gênero e Religião, além de ser terapeuta, taróloga, astróloga e analista de sonhos.

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