Cinderela é lição de humildade e amadurecimento
Conto famoso mostra como lidar com inveja, independência e aceitação
Cinderela, um dos contos de fada mais popular da humanidade, ganhará uma nova versão para o cinema em breve pela Disney. Com sua estreia prevista para 2015, o interesse por esse conto ganha cada vez mais força e apelo entre adultos e crianças. A versão mais famosa de Cinderela, ou Gata Borralheira, é a do escritor francês Charles Perrault, de 1697, baseada em um conto italiano popular chamado “La gattacenerentola” (“A gata borralheira”), com a famosa fada-madrinha. Entretanto, a versão mais antiga é originária da China, por volta de 860 a.C. A versão dos irmãos Grimm também é bastante conhecida, entretanto nela não há a figura da fada-madrinha. E é sobre essa versão que baseio a análise, uma vez que é mais rica em simbologia.
Cinderela é uma princesa que faz muito sucesso entre as meninas, por tratar de temas muito comuns na adolescência, e também devido à superação do sofrimento vivido pela heroína, o que move um apelo emocional imenso a milhares de mulheres ao redor do mundo. O tema central do conto é a inveja e a rivalidade entre irmãos, que é um tema bastante conhecido na Mitologia. Podemos citar como exemplo o mito egípcio de Osíris, que foi assassinado e teve seu trono usurpado pelo seu irmão Seth. Muitas crianças costumam passar por esses sentimentos, que não necessariamente são vividos entre irmãos de sangue. Eles podem se manifestar entre primos ou até mesmo amigos.
Além disso, de certa forma, podemos afirmar que algumas crianças, em maior ou menor grau, em determinado momento, se sentem preteridas pelos pais. Nesses casos, o pequeno passa a sentir que sua mãe é uma madrasta, pois há aquele momento que a criança deixa de ser um bebê e passa a ter algumas obrigações. Ela não tem mais o colo materno quando chora e a mãe parece não ter mais paciência com ela. E é justamente esse lado infantil que faz birra e que ainda quer colo, mas que ainda habita em nós, que precisa ser superado para ocorrer o amadurecimento da personalidade.
Dificuldades ajudam Cinderela a fortalecer sua individualidade
Todavia, observando o conto Cinderela, veremos que a madrasta e as irmãs terríveis foram imprescindíveis para o desenvolvimento e o crescimento da heroína. Sem elas, a protagonista ainda estaria vivendo o anseio natural de ser reconhecida como especial, mas sem ser transportada a uma nova realidade superior e transcendente, como ocorre ao final do conto.
a madrasta e as irmãs terríveis foram imprescindíveis para o desenvolvimento e o crescimento da heroína. Sem elas, a protagonista ainda estaria vivendo o anseio natural de ser reconhecida como especial, mas sem ser transportada a uma nova realidade superior e transcendente, como ocorre ao final do conto.
A história se inicia com a morte da mãe da menina, que é substituída pela madrasta. O pai de Cinderela só aparece no começo do conto e não é nem bom e nem mau, apenas um homem rico e comum. A trama, então, se desenvolve ao redor de personagens femininos, mostrando que a heroína deve trabalhar sua identidade enquanto mulher antes de se unir ao príncipe.
Nos contos de fada, a morte da mãe simboliza aquele momento crítico na vida das crianças, chamado de perda do paraíso. A boa mãe de Cinderela morre e sobre seu túmulo cresce uma árvore na qual pousa uma pomba branca que aconselha a menina. Isso significa que alguma coisa sobrenatural sobrevive à morte da figura materna positiva e a substitui. Sendo uma espécie de fetiche, que encarna o espírito da mãe.
A identificação com a mãe boa é um sério risco à individuação da mulher. Afinal, ela precisa ter um comportamento feminino autêntico e não um modelo feminino típico. Dessa forma, poderá mostrar a sua individualidade e a sua diferença no mundo. Sendo assim, a morte da mãe significa, simbolicamente, que a menina toma consciência de que não pode mais se identificar com ela, ainda que a relação positiva essencial e afetiva permaneça. A morte da mãe é o que chamamos de início do processo de individuação de Cinderela.
É muito mais difícil para a mulher viver esse processo de não seguir um modelo feminino típico padrão. Desde pequena as meninas tendem, muito mais que os meninos, a seguir umas as outras em termos de roupas, penteados, música e comportamento, o que as leva a se transformarem em um rebanho de ovelhas. Por essa razão, chovem revistas femininas “ditando” moda e comportamento. As que não se seguem a moda e os padrões são postas de lado e aí começa o que hoje se denomina “bullying”. Entretanto, quem sofre o “bullying” e é posto de lado tem muito mais chances de entrar na individuação.
Quanto mais inconsciente de sua própria personalidade é a mulher, mais ela tende a falar mal das outras ou pregar peças maldosas, pois somente assim pode marcar diferença no mundo. No conto, a madrasta e as irmãs de Cinderela simbolizam as mulheres que elas mesmas não conseguiram ser, enquanto indivíduos. Não conhecem sua própria personalidade e não desenvolveram nenhum trabalho criativo e pessoal.
Cinderela passa, então, a lavar, passar e cozinhar para a madrasta e as irmãs, e acaba dormindo entre as cinzas. A protagonista mostra que está se tornando uma personalidade única e por isso incomoda a família, que a vê como uma inimiga. Elas são como um rebanho que percebeu que um de seus membros deseja seguir seu próprio caminho. Quando alguém empreende uma análise, é comum que a família inteira se agite e se irrite com esse indivíduo, pois é justamente essa pessoa que está tirando a todos do estado de inércia. E é sobre isso que Cinderela fala, quando alguém resolve se conhecer e seguir a si próprio, deixa de seguir o rebanho e as neuroses familiares, causando inveja e raiva das pessoas mais próximas, pois mostra o que deviam estar fazendo e não estão.
Conto é cheio de simbologias
Um dos trabalhos de Cinderela é fazer a triagem de uma grande quantidade de grãos, simbolizando o esforço imenso que a consciência deve fazer para se separar do desejo de seguir seus ancestrais. As cinzas nas quais a heroína dorme representam a humilhação e a contrição, que são as formas mais profundas e eficazes de remorso, pois elas curam todos os pecados. Aqui o ego entra em contato com sua sombra, seu lado negativo. Ele é reduzido a pó e percebe que deve ceder a poderes e forças do inconsciente que são muito maiores que ele. Esse momento traz muita humildade.
Cinderela também passa a ter ajuda de animais e da árvore onde sua mãe está enterrada para poder ir ao baile. Isso significa que ela passa a confiar em aspectos do seu inconsciente ligados aos seus instintos e ao legado deixado pela boa mãe em sua psique. Mas o fato de se relacionar com figuras da natureza significa que ela ainda não está apta a se relacionar e estabelecer laços, o que é algo que faz parte da natureza do feminino.
Sapato perdido de Cinderela simboliza liberdade e vaidade feminina
Cinderela vai três vezes ao baile, com uma bela carruagem, símbolo da realeza e de algo que a carrega em direção a sua verdadeira vida, mostrando que em breve se tornará uma rainha. Entretanto, na última vez o príncipe manda que espalhem piche na escadaria e, quando a moça passa por lá, seu sapato do pé esquerdo fica grudado. O príncipe pega o sapatinho, que é pequenino, gracioso e todo de ouro. O sapato no conto de Cinderela simboliza liberdade, pois é esse acessório que deixa nossos pés confortáveis e aquecidos para podermos nos locomover para onde quisermos. Além disso, representa a vaidade feminina, uma vez que muitas mulheres são apaixonadas por sapatos.
O sapato no conto de Cinderela simboliza liberdade, pois é esse acessório que deixa nossos pés confortáveis e aquecidos para podermos nos locomover para onde quisermos. Além disso, representa a vaidade feminina, uma vez que muitas mulheres são apaixonadas por sapatos.
Já o ouro simboliza aquilo que Carl Jung denominou de “self”, ou “si mesmo”, que representa o centro de nossa personalidade tanto consciente quanto inconsciente e que ordena tudo. Ele é a imagem do potencial mais pleno do indivíduo, nossa autoridade interna e a posição central do destino de cada um de nós.
Portanto, o sapato leva Cinderela ao encontro com o outro, a união com o lado masculino, que era ausente anteriormente, mas que agora se encontra disponível a auxiliá-la e a tirá-la da realidade conflituosa em que vive. Ele mostra a sedução e a beleza femininas que encantam o homem.
É por essa razão que o ato de se apaixonar por alguém é sentido como destino no conto, pois provém desse centro interior, o “self”. As irmãs não conseguem calçar os sapatos, chegando ao ponto de mutilarem seus pés para poder caber no calçado. Isso significa que ninguém pode viver a vida de outro sem mutilar uma parte sua. O “self” nos manda sempre aquilo que devemos viver, a porção que nos cabe e que é somente nossa.
É comum nas mulheres o fato de “mutilar” seus corpos para poder se encaixar em padrões estabelecidos pela sociedade, principalmente quando esse padrão alcançou algum êxito visível. Mas vemos que esses padrões mutilam nossa autoestima e nossa personalidade mais profunda.
Ao final, Cinderela alcança sua redenção e se casa com o príncipe. As irmãs malvadas são punidas tendo seus olhos furados por pombos e ficam cegas – para si mesmas e para quem elas realmente são. Vão passar a vida tentando ser outra pessoa e se encaixar em padrões.
Cinderela se torna alguém da realeza, mostrando que não é mais uma pessoa comum. Ela encontrou a transcendência e sua realidade foi transformada, transmutada. A protagonista agora pode seguir sua personalidade mais profunda sem se importar com os padrões limitantes da sociedade e de sua família.
Para continuar refletindo sobre o tema
É analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.
Saiba mais sobre mim- Contato: hellenmourao@gmail.com
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