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  • “O Menino e o Mundo” levanta reflexões profundas

    Animação fala de degradação, fuga, crise e obsessão em ser normal

    Atualizado em

    O filme brasileiro “O Menino e o Mundo”, que concorre ao Oscar 2016 de melhor animação, trata de um tema extremamente relevante e atual da nossa sociedade: a degradação dos recursos naturais. A história fala de um menino chamado Cuca, que está à espera da volta do seu pai, que partiu para a cidade grande em busca de novas oportunidades. Cuca e sua família moram em uma aldeia, na qual produzem o que consomem e vivem de forma simples, mas feliz. A música está presente na vida da família e o menino tem paixão em ouvir seu pai tocar.

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    Eis uma realidade incontestável em nosso país, onde a maioria, sem contar com recursos, sai de sua terra natal em busca de oportunidades e acaba se frustrando neste processo. Poucos são os que realmente conseguem destaque e uma vida com dignidade. Com apenas uma foto de sua família dentro da mala, Cuca resolve sair de casa em busca do pai. Sempre guiado pelo som (e bolhas coloridas) da flauta que o pai tocava, ele passa a ter várias descobertas em um mundo que até então, em sua visão, era simples.

    Busca de Cuca pelo pai representa nossa necessidade de realização na vida

    Um aspecto importante a ser analisado na animação é a busca pelo pai. Nossa sociedade ocidental está pautada nesta procura dramática, que inclusive já foi tema de diversos filmes e também é muito recorrente na jornada do nosso herói. Isto simboliza, em termos pessoais e coletivos, a busca por realização no mundo externo, o trabalho, a cultura, a tecnologia, a eficiência e a perfeição.

    A angústia de Cuca pela volta de seu pai retrata nossa própria angústia enquanto ocidentais, pela realização externa, pelo nome, pelo dinheiro, pela eficiência.

    A angústia de Cuca pela volta de seu pai retrata nossa própria angústia enquanto ocidentais, pela realização externa, pelo nome, pelo dinheiro, pela eficiência.

    Uma ânsia que vemos hoje nos levou à degradação de nossos recursos e à mutilação de nossa própria alma. Perdemos, com isso, o contato com o inconsciente, com os instintos, com a natureza, com o irracional e com o Ser.

    O menino, então, entra em uma jornada no mundo da fantasia, cheio de cores, trazendo emoções e sensações à tona. Com isso, ele faz um mergulho em seu interior, em que a realidade externa e interna se mistura. Ao entrar em seu interior, Cuca se depara com a realidade opressiva das grandes cidades e conglomerados urbanos e com o capitalismo selvagem, que estão deixando as pessoas alienadas e criando burros adestrados. A animação mostra com clareza a concentração de pessoas de baixa renda nas grandes capitais, que vieram por falta de boas oportunidades e pela pobreza extrema.

    Cuca, então, inicia sua jornada encontrando um senhor que trabalha na colheita de algodão e é rejeitado por estar velho e doente. Este é um aspecto fortemente enfatizado pelo patriarcado, que prega um “herói solar”, ou seja, alguém que está sempre em busca de eficiência e perfeição, sem levar em consideração os fatores subjetivos, que são tidos como fraqueza pelo capitalismo.

    Esse personagem pode ser interpretado como um velho sábio que auxilia o menino, mas acredito que ele representa o outro aspecto da personalidade de Cuca, uma “dupla” que mostra o aspecto da dura realidade, que contrasta com a ingenuidade infantil.

    O menino segue a sua jornada em busca do pai, por meio das bolhas coloridas da música, e se encontra com outra parte de sua própria personalidade. Esta mostra ao menino uma fábrica de roupas onde trabalha. Lá Cuca vê milhares de máquinas e trabalhadores. Os operários ficam por horas no trabalho, se submetendo a péssimas condições não só físicas, mas também psicológicas. A repetição incessante das tarefas e o aspecto de cansaço das pessoas mostram a normose (uma obsessão doentia em ser normal) que assola nossas vidas atuais. Somos levados a repetir mecanicamente gestos, a ter o mesmo comportamento que a massa, sem sequer questionarmos.

    Somos levados a repetir mecanicamente gestos, a ter o mesmo comportamento que a massa, sem sequer questionarmos.

    Outra crítica feita na animação é a respeito do hábito da sociedade visar apenas o lucro, utilizando para isso a exploração de trabalho, de forma a atingir mais o poder. Nossa sociedade ocidental atingiu o limite do modelo patriarcal e do “herói solar”. Com isso, estamos em uma atitude unilateral extrema, na qual a subjetividade, a natureza e os sentimentos precisam ser trazidos de volta à consciência, para que assim encontremos o equilíbrio destas forças.

    Festividade brasileira é retrata no filme e mostra seus prós e contras

    Há também outro contraponto apresentado na animação e que faz parte da estrutura psíquica do povo brasileiro, que é a festividade. Vemos isso representado pelas cores e músicas com as quais o menino se depara e que segue para encontrar o pai. Cores, imagens e sons que podem ser uma alusão ao nosso carnaval.

    Do lado positivo, a festividade pode ser uma forma de resgatar os valores perdidos, caso isso seja compreendido. O dionisíaco Carnaval, com suas cores, sons e sensações pode nos auxiliar no encontro com o irracional. Assim como no Oráculo de Delfos, no qual Apolo – o deus da razão, moderação consciência e perfeição – cedia lugar durante três meses ao intempestivo, selvagem e irracional Dionisio, nossa sociedade com valores apolíneos precisa novamente entrar em contato com essas forças, dando a elas seu devido lugar de culto e resgatando o caráter sagrado dessas atividades.

    Pelo lado negativo, isso também demonstra uma fuga da realidade que infelizmente é mostrada como uma forma arquetípica do brasileiro. O não querer enxergar e confrontar a realidade e buscar formas de evasão também não é a saída, pois lembrando que as forças do inconsciente e do consciente estavam em harmonia no Oráculo de Delfos.

    Animação levanta reflexão: como usar a crise a seu favor?

    Para finalizar, o menino acaba em meio a um confronto entre duas forças: a dos grandes conglomerados urbanos contra os músicos e dançarinos, que mantinham as cores da cidade. Esse confronto se dá por meio de dois pássaros: um colorido e um negro. Isso mostra que atualmente estamos em um intenso conflito de opostos. Nossa racionalidade e o instinto de poder, contra a subjetividade e os sentimentos. Estamos realmente divididos.

    No entanto, é da crise que surge o progresso e a oportunidade de sairmos da neurose.

    No entanto, é da crise que surge o progresso e a oportunidade de sairmos da neurose.

    Se queremos, então progredirmos enquanto seres humanos e saímos da unilateralidade. Afinal, é importante abandonarmos a negação da realidade e compreendermos que não somos apenas o que fazemos e mostramos ao mundo, mas também somos seres únicos, com uma expressão única que não pode caber em um molde ditado por regras; e que o nosso ser é mais importante do que aquilo que temos e produzimos.

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    Hellen Reis Mourão

    Hellen Reis Mourão

    É analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.

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