Preconceitos sutis no dia a dia
Reflita e evite programações venenosas em seus pequenos atos
Por Alexey Dodsworth
Eram 7 horas da noite, horário de pico de uma tradicional academia paulistana de classe média-alta. Eu corria na esteira e – repentinamente, não sem susto – dei-me conta de algo que não tinha percebido antes: a absoluta ausência de pessoas de cor negra na academia. A situação não me chamaria a atenção se eu estivesse malhando na Dinamarca, mas considerando que eu a) estava no Brasil e b) me encontrava numa cidade de pessoas de todas as cores, achei aquilo no mínimo inusitado. Nunca tinha me dado conta de tal coisa, apesar de malhar naquele lugar há meses. E, de repente, fez-se a luz: não havia negros no local. Nem um pra contar história.
Meditativo, ainda que numa velocidade de 8,5 km/h, pus-me a pensar nas possíveis razões da ausência de pessoas negras em minha academia. Teriam elas menos dinheiro para poder gastar num lugar tão caro? À parte os faxineiros de pele escura, todos os presentes naquele lugar tinham a pele branca ou, no máximo, eram morenos claros.
O IBGE atesta que pessoas negras em geral ganham cerca de 40% menos do que pessoas de cor branca. A desigualdade financeira talvez explicasse aquela incômoda ausência. Talvez estivessem malhando numa academia mais barata…
Mas eis que, como que para contradizer minha percepção, um indivíduo negro adentrou o ambiente. Aleluia, pensei. Pelo menos um negro tinha dinheiro pra pagar aquela academia – o que não mudava muita coisa, já que ele era claramente exceção. Fiquei curioso e me pus a observá-lo: bem vestido, extrovertido, tinha vários amigos no ambiente, que o saudaram com vigor quando ele chegou. Nenhum parecia sequer vagamente racista. Pensei: talvez tenham razão, o preconceito é de classe, o preconceito é contra pobres (não que isso seja melhor, aliás).
Entretanto, um fato específico desmentiu completamente esta teoria de preconceito focado em classes sociais. Não sem espanto, percebi que, quando o sujeito negro (de classe média alta, pelo que podia se aventar de suas roupas) utilizava um aparelho, a pessoa que vinha depois limpava o aparelho com um pano com álcool. Este seria o procedimento correto para todas as vezes que alguém utilizasse um aparelho, e mais correto ainda seria se a própria pessoa que acabou de usar limpasse a máquina. Mas ali havia uma clara exceção: ninguém se preocupava em limpar os aparelhos quando qualquer outra pessoa os usava. Só quem merecia a “limpeza” era o negro. Quer dizer, no suor alheio podemos nos refastelar, contanto que não seja o suor do negão. E, notem bem, ele nem suava! A academia, cara que é, tem um potente ar condicionado.
Preconceito é coisa aprendida
A cena foi, para mim, um tapa na cara. O mais impressionante é que ninguém parecia estar fazendo aquilo conscientemente. Nem o próprio rapaz negro parecia se dar conta de que os aparelhos eram limpos com álcool apenas depois que ele os usava. E quem fazia isso eram seus próprios amigos. Depois de ver a coisa se repetir por mais de trinta vezes, me dei por vencido: não era paranoia minha. Os aparelhos realmente só eram higienizados por causa do negro.
Ninguém nasce racista, preconceito é coisa aprendida. Ainda que se possa argumentar que tendemos a naturalmente estranhar pessoas que apresentem características diferentes das nossas, isso não justifica a fantasia – no caso, aparentemente inconsciente – de que uma pessoa negra seja “mais suja” e demande “mais higiene” do que outras pessoas. Isso é coisa incutida desde a mais tenra infância.
Venho de Salvador. Antes de 1988 – quando o racismo foi pontualmente criminalizado – perdi a conta de quantas vezes vi pessoas negras serem alvo de termos pejorativos. Um dos mais comuns era “preto fedido”. Felizmente, não vejo mais este tipo de coisa sendo dita, justamente porque ficou claro que se referir assim a alguém é crime. Mas o fato de o racismo ter sido pontualmente criminalizado não elimina o preconceito. No fundo, muita gente ainda acha que negros são inferiores, ou potencialmente criminosos, apenas recalcam o que pensam para não serem processadas. Pior ainda é quando este racismo é inconsciente. Duvido, por exemplo, que as pessoas da minha academia se vejam como racistas. Seus movimentos “higienizadores” eram automáticos, inconscientes. Eu mesmo não teria me dado conta da coisa, se não estivesse muito atento e refletindo sobre tais questões.
Papel educativo da criminalização
O caminho dos Direitos Humanos não se alcança através de criminalizações, e sim da educação. Mas uma coisa não exclui a outra, e concebo perfeitamente o papel educativo de uma criminalização. Se pontuamos que uma coisa é crime, isso fica mais claro. E sou testemunha de que a criminalização do racismo pode até não ter acabado com o racismo, mas diminuiu sua intensidade.
Evidentemente, não é possível criminalizar a atitude dos camaradas da academia. Eles mesmos sequer pareciam ter consciência do que faziam. Nem o próprio rapaz negro se tocava do que estava ocorrendo. E é em situações como esta que o Direito tem pouco a fazer, mas a Filosofia tem muito. O ato de pensar, de pensar com rigor e disciplina pode fazer com que nos demos conta de procedimentos repetitivos e programações existentes sobre as quais nunca nos demos conta.
O ato de pensar, de pensar com rigor e disciplina pode fazer com que nos demos conta de procedimentos repetitivos e programações existentes sobre as quais nunca nos demos conta.
E por isso mesmo que uma educação filosófica se faz tão necessária desde cedo. Para apagar os vestígios deste racismo remanescente.
Para nos livrar da escravidão cujos grilhões acorrentam todos nós, independentemente da cor de nossas peles: a escravidão do preconceito repetido por séculos e séculos. Podemos e devemos ser maiores do que isso e dizer “não” a este insidioso senhor de engenho que habita os recônditos de nossas mentes.
Astrólogo e autor de análises de Astrologia, Tarot e Runas do Personare. Sua afinidade com temas esotéricos se alinha com sua defesa à liberdade de saberes, sejam eles científicos ou não.
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